quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Morte numa ponte





43 anos, 11 meses e 6 dias depois do operário Gerard McKee ter despencado em queda livre de uma viga da maior ponte pênsil dos Estados Unidos, outro trabalhador da ponte Verrazano-Narrows mergulhou em pleno ar e morreu em acidente de trabalho. No início da madrugada de sexta-feira, Manuel Pereira tentou escapar de uma barra de concreto fora de controle que se aproximava do andaime onde trabalhava reparando a estrutura metálica. A queda de 46 metros fez seu coração e seu martelo pararem de bater.

McKee morreu numa quarta-feira, bem no meio de uma semana lotada de serviço. A simples perspectiva de descer alguns hambúrgueres e cerveja pela garganta no fim da semana árdua que parecia não ter fim deve ter deixado McKee com água na boca. Morreu frustrado. Pereira morreu na madrugada de uma sexta, de barriga cheia, canecos vazios, e caiu de uma altura menor que seu colega falecido há quatro décadas. Morreu menos frustrado que McKee.

Gerard McKee, funcionário da ponte Verrazano-Narrows – que liga os distritos de Staten Island e Brooklyn, em Nova York –, não foi nem o primeiro (24 de agosto de 1962) e nem o segundo (13 de julho de 1963) a morrer na construção da ponte, iniciada em 1959. Sua morte, no entanto, foi mais chocante e marcante do que as antecedentes. Funcionários tentaram puxá-lo de volta à plataforma em cuja borda ele se agarrava com dificuldade. Impotentes, seus colegas tiveram que deixá-lo cair 100 metros abaixo e vê-lo se chocar irremediavelmente com a superfície do mar. Durante a queda, sua camisa se desprendeu do corpo. Caiu na água tempos depois de seu dono.

16,047 dias atrás, em 9 de outubro de 1962, enquanto o corpo pesado de McKee – que teve, infelizmente, seu dia de pluma – voava da ponte, o jornalista Gay Talese estava na metade da produção de uma das maiores reportagens da história do jornalismo. A quase épica The Bridge era fruto da observação afiada do repórter, que conviveu de 1961 a 1964 com os trabalhadores da obra, infiltrando-se em suas famílias e misturando-se aos operários nas vigas e cabos de sustentação.

Talese foi a fundo, como bom jornalista. Colocou em risco a vida pessoal (que, para um jornalista, é o mesmo que sua vida profissional) para destrinchar a saga anônima dos construtores, muitos deles índios beberrões que levavam vidas mais perigosas em terra do que 180 metros acima do mar. Um prato cheio para o olhar minucioso de Talese, avesso ao imediatismo e ao culto do furo jornalístico.

Como um excelente jornalista – e afastando a idéia de que o jornalismo literário distorce fatos para dar maior efeito dramático –, Talese se preocupou em retratar as mudanças que ocorriam naqueles que eram afetados direta e indiretamente pela construção da ponte. Moradores dos arredores insatisfeitos com o barulho, esposas carentes e famílias morrendo de saudades de seus parentes operários e diretores da obra atolados de problemas têm voz ativa na reportagem, que relatou, literalmente, todos os lados possíveis da questão.

Como um péssimo jornalista, Talese não presenciou a morte de McKee, que faleceu um ano antes da ponte ser finalizada e aberta para uso. No entanto, esmiuçou com tal senso crítico e talento narrativo um fato cotidiano – uma morte, uma simples morte – que nem 100 New York Times ou dúzias de Folhas de S. Paulo teriam tido tanta profundidade e vivacidade.

No caso Manuel-Pereira-vai-para-o-céu, o New York Times não deu mesmo conta do recado. Uma morte por acidente de trabalho envolve múltiplas questões, que só podem ser esclarecidas por testemunhas, advogados, médicos e outros especialistas na complexa mas banal arte de morrer. O jornal, ou melhor, o blog que serve como suplemento da editoria de cidade, City Room, pecou pela overdose de informações institucionais e pelo buraco informativo causado pela falta de senso crítico. “Shame on the Times for its lack of critical analysis”, é o que diz um leitor também indignado que deixou um comentário na notícia.

A notícia relata a queda do operário, o que disseram alguns colegas, por que a ponte estava sendo reparada, quantos carros passam por dia pela estrutura metálica suspensa, um pouco de história e os benefícios do conserto. Só deixou de ir a fundo: as regras de segurança estavam sendo seguidas?, os trabalhadores da ponte estão regularizados?, de quem é a responsabilidade se futuramente for comprovada uma falha de segurança?, existe culpa do contratante, que apressou as obras por causa da necessidade de tráfego constante?

O NY Times e outros jornais da região fizeram praticamente a mesma cobertura da queda de Manuel Pereira. Por exemplo: os jornais Eyewitness News (WABC-TV), newsday.com, NY1 News, Poughkeepsie Journal e o New York Post repetiram a fórmula do NY Times. Já o Staten Island Live e o blog Gothamist foram os únicos que chegaram perto de uma cobertura digna de jornal.

Digna de um Manuel Pereira. Digna de um Gay Talese. Digna do capacete de Manuel Pereira, que provavelmente se desprendeu do corpo durante a queda, alcançando seu dono pouco tempo depois.

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