sábado, 28 de julho de 2007

Vivendo e morrendo de cinema no Brasil

A ciência explica: uma rica mina de ouro subterrânea continua a dar frutos mesmo após muito tempo de exploração. Como uma fonte que verte água até se esgotar.

O cinema de Vieira Filho (1917-1997) é assim. Dez anos após sua morte, um filme nunca lançado antes em circuito comercial foi descoberto na casa onde morava, dentro do armário de temperos da cozinha. A fita era desconhecida até para os familiares. “A cozinha era o lugar preferido dele, e desde que morreu, nunca mais entramos nela. Dói muito recordar, por isso só pedimos delivery”, diz a viúva Jurema Vieira. “A nova faxineira não foi informada de que não podia entrar na cozinha, e sem querer trouxe à tona esse filme inédito que mata um pouco da nossa saudade”.

De acordo com o cineasta Hugo Massimani, amigo da família (que agora está reeditando em dvd as obras de Vieira Filho), há chances de mais filmes secretos e peças inacabadas serem encontradas nas dependências da cozinha da casa. “Era da natureza do Vieirinha fazer esse tipo de brincadeira de esconde-esconde”, relata. “Graças a esse espírito brincalhão e descuidado dele, acho que vamos esbarrar em verdadeiras pérolas na busca minuciosa que estamos fazendo nos armários, jarros, potes de conserva, eletrodomésticos e ralos da cozinha”, se entusiasma o cineasta.

A bobina do filme (aparentemente sem título) encontrado no armário da cozinha está em péssimas condições de preservação. Dentro da lata enferrujada, o rolo do filme veio acompanhado de uma longa carta de Vieira Filho destinada a seu irmão mais novo.

“Fiquei emocionado demais com esse recado”, diz Júlio Vieira. “Não entendi nada do que ele diz na carta, mas entre os trechos ilegíveis, consegui identificar várias vezes a palavra ‘mandioquinha’, tema do filme dele Pequerrucha Pelourinho, que é meu favorito dele”, revela. “Ele sabia que eu adorava o ‘Pequepê’, que é como eu chamava carinhosamente o filme. Não éramos irmãos muito próximos, mas agora sei que, no fundo, ele se importava comigo”.

A recente descoberta desenterra a obra e a vida de um dos maiores cineastas do Brasil. Polêmico, contundente e controverso, Vieira filho teve uma infância difícil em Campinas, mas alcançou o sucesso na direção cinematográfica após breve passagem mal-sucedida como professor universitário.

Morreu tragicamente aos 80 anos, deixando como legado mais de 10 filmes longa-metragem e uma mensagem de otimismo para o cinema nacional. “Ele próprio foi um manifesto”, diz Massimani. “A resposta para a pergunta fundamental sobre a possível evolução do cinema brasileiro veio dele: sim, dá pra viver de cinema no país – mas também dá pra morrer de cinema”.


Do lixo ao luxo

A inconstância dos takes, a irregularidade ideológica e a linguagem frenética, quase esquizofrênica dos filmes de Vieira Filho refletem a montanha-russa de emoções que foi sua existência. Infância difícil, adolescência tardia e velhice precoce, Vieira Filho nunca se encaixou e nunca se adequou a nenhuma situação – não levantou bandeira nenhuma, muito menos a sua. Nas primeiras experiências com a câmera, deixou em evidência sua baixa auto-estima e seu complexo de inferioridade. Em Vigor, Talco nos olhos e Este lado para cima, da década de 60, seu principal material de trabalho é a tortura e a auto-flagelação (que o diretor praticava constantemente com galhos de arruda e vinagre de maçã).

Já em Manjar dos deuses, ele passa a praticar a gula como ato de auto-piedade. Apesar de esquelético, desenvolveu uma relação paranóica com os alimentos até o fim de sua vida. Em uma declaração do período de realização do curta-metragem, Vieira Filho relatou sua impotência: “Eu como, como e como para me maltratar, mas não engordo. É como se nem a comida me suportasse”.

Coisa-peixe é o mais poderoso de seus curtas. Um homem que acredita ser uma carpa diferente das outras – já que vive fora d’água – tenta se punir deixando suas escamas por onde passa. Assim, poderá extinguir-se aos poucos e finalmente voltar à Lagoa Rodrigo de Freitas, seu verdadeiro lar. A forte cena na qual o homem toma conhecimento de que é uma carpa-mutante, com Frank Sinatra de fundo musical, fez escola no 1º Festival de Cinema do Asilo-Colônia de Pirapitingui de 1961.

O curta Anacoluto coincide com o magistério de Vieira Filho e já é uma prévia do que viria ser sua ‘trilogia da palavra’, da década de 70. A fracassada aventura como professor de lingüística fez com que ele desejasse se vingar do mundo da educação, que tantas humilhações lhe rendeu. Acusado de dislexia, incompetência didática e de usar uma quantidade excessiva e desnecessária de giz, foi expulso do corpo docente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com justa causa. E sob vaias.

Veio então o primeiro longa-metragem, Gônadas (1971), financiado com o dinheiro da aposentadoria de sua mãe (sem o consentimento da mesma). Foi um fracasso total de bilheteria devido ao forte e incômodo tema (amor entre duas pessoas) e considerado imaturo para um cineasta estreante de 56 anos de idade. A crítica rechaçou fotograma por fotograma de seu filme e criou uma indisposição que viria a ser conflitante entre cineasta e crítica especializada.

Abalado e confuso, dois anos depois lança Meu primeiro longa vai ser um sucesso, que conta a história de um cineasta estreante de 56 anos que é criticado por seu primeiro filme e acaba assassinando brutalmente todos os críticos de cinema com um porrete. A trama muito familiar ao universo fílmico vieirafilhoano ganhou o prêmio da Associação dos Críticos de Cinema de São Paulo.

A experiência humilhante como professor de lingüística já citada manifestou-se de forma recorrente na filmografia do diretor: sua “trilogia da palavra” já foi comparada à “trilogia da incomunicabilidade” de Antonioni e às três primeiras temporadas da Família Trapo. Palimpsestos, O rébus da bigorna e Ben Mu Dlin (também conhecido como Água-rás) formam a expressão maior da obra de Vieira Filho, considerada sua obra-prima. Os três filmes não têm nenhuma ligação entre si, a não ser o banho de sangue derramado – principalmente no metalingüístico Blen Mu Dlin, no qual os protagonistas só conseguem se comunicar através de onomatopéias e, cientes disso, matam-se desesperadamente uns aos outros utilizando interjeições como armas.

Deixando de lado a violência e a crueldade inerentes ao ser humano, Vieira Filho entra em uma nova fase de sua carreira. Já na casa dos 70 anos, se dedica a destrinchar, de maneira bem-humorada e acessível, o universo da puberdade: Banho-Maria só tem atores abaixo dos 3 anos de idade e é protagonizado por uma couve ainda em flor; Pequerrucha Pelourinho e Bife a cavalo, sua obra mais madura, mostram como Vieira Filho conseguia passar de um tema pesado e denso para outro bem mais leve (excesso de sal na comida) com maestria. A osteoporose também aparece como objeto de estudo em Banho-Maria, e se pode até dizer que o diretor evitava encarar sua velhice. Sentia-se uma criança, como disse em entrevista ao Correio Popular em 1985: “Sinto-me uma criança”.

Sempre polêmico e além de seu tempo, no entanto, o sexo não existe em seus filmes. A sexualidade do próprio diretor foi bastante debatida na mídia: “nasci em Campinas, meu bem, mas não sou gay”. Mesmo na sua obra mais notadamente sexual, Mastro em riste, não há insinuações de desejo, fornicação ou sacanagem – em certo momento, os 76 marujos (sem comida, sem roupas e sem destino) confinados no navio danificado e condenado à eterna deriva anseiam pelo último suculento mamão-papaia que rola no convés. O sexo sempre vem por último. Em Caniço e carniça, filme de menor duração do cineasta (167 minutos) – Vieira Filho não era adepto ao afeto entre seres humanos –, Juca quer desesperadamente dormir com Elisabete, que é surda. Como não há diálogos nesse longa-metragem, paira no ar a indagação de que Juca é mudo: só nos resta então contemplar a beleza fora de foco das cenas filmadas no depósito de lixo urbano, ao luar.

A penúltima obra de Vieira Filho (Bife à cavalo) ficou inacabada, mas ele a lançou mesmo assim, por problemas financeiros. Os produtores tomaram conhecimento a tempo (mais especificamente com 100 min de filme já rodado) que o dinheiro liberado para a produção fora utilizado para pagar o tratamento ortodôntico do diretor. Vieira Filho ficou então arrasado, sem um dente na boca e com um sonho destruído – ele passou 7 anos indo de tribunal em tribunal para adquirir os direitos de filmar o romance Vai pra luz, Amália, que viria a ser seu penúltimo filme. A autora do romance alegava que a demora no processo ocorreu por causa do tema polêmico da obra, que julgava não ser adequado para uma mídia visual.

Pois o experiente diretor provou sua competência ao transformar literatura em sétima arte. Em uma entrevista à TV Cultura em 1986, Vieira Filho desabafou: “Quem disse que canibalismo e cinema não andam juntos?”. “Meu filme prova que é possível extrair beleza até de pedra, ou restos humanos. Os críticos que metem a boca no meu trabalho não enxergam que o personagem não se alimenta de carne, mas sim de humanidade”, disse, com a boca frouxa e molhada por causa da falta de dentes – metáfora essa que sintetiza a obra e a vida de um dos únicos gênios do cinema brasileiro: um artista banguela que sofre de uma fome arrebatadora de novas idéias.

Toda a tensão transbordante do cinema de Vieira Filho deu as caras também nos filmes educativos que fez durante curto período, na ditadura militar. Foi convocado pelo INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo), fundado por Roquette-Pinto, para concluir 5 produções, das quais finalizou 4: Engenhoca e sovaca (1977), Circulação do sangue na cauda do girino (1977) e a suíte gastronômica A gênese do toucinho e A gênese do painço (1980 e 1982, respectivamente). O 5º filme da série, Ordenha a vácuo, não chegou a ser nem escrito, pois Vieira Filho recusou o baixo salário oferecido. Depois de nova oferta do governo, mais atrativa, aceitou a missão, mas utilizou todos os 55 cruzeiros para comprar novas pantufas noturnas.

Já no fim de sua carreira, com quase 80 anos, o diretor sentia que sua morte era algo iminente. “Nunca desejei tanto o fim da minha vida. Sinto que estou próximo, mas não estou nem aí pra morte”, bradou em entrevista à TV Globo em 1996, a última de sua vida.

Mas não estava em seu destino tirar a vida com as próprias mãos, como tentou fazer algumas vezes, sem sucesso. Vieira Filho pode não ter gostado de viver, mas a vida gostou muito dele: para morrer, teria de ser empurrado para fora do palco da vida.

Em 1997, um homem de pochete e bigode, provavelmente não muito entusiasta de sua obra, o empurrou no trilho do trem do antigo VLT (veículo leve sobre trilhos) enquanto o diretor admirava o movimento dos vagões, um de seus hábitos preferidos. Quando jovem, morava próximo a linha ferroviária, e seu pai o levava para assaltar a carga dos vagões. “Quando meu pai começou a espancar minha mãe, meu herói e mestre morreu para mim num piscar de olhos”, escreveu em sua autobiografia, escrita em 1985 (Companhia das Letras, 23 p., R$ 3,50). “Doeu muito, mas tive de sair de casa com a roupa de corpo, sem meias e sem sapatos”. O menino de apenas 32 anos começava a vida definitivamente com o pé no chão, mas não perderia nunca o costume de voltar à ferrovia para recordar as poucas e boas lembranças de sua primeira infância.

O maquinista do trem que enviou o diretor à eternidade fica chocado até hoje com a terrível cena. “Foi horrível ver o homem todo empastelado embaixo do trem. Deu um trabalhão limpar as rodas depois. Ele ainda estava vivo quando o socorri, chorava feito um desmamado e repetia a palavra ‘mingau’ em vários tons diferentes, como se estivesse cantando”, revela. “Sei disso porque toco violão, e ele era muito desafinado. Como se estivesse ensaiando a própria morte”, recorda.

A viúva Jurema, que hoje administra o espólio de Vieira Filho, sofreu com a perda do companheiro de toda uma vida. “Mas acho que foi melhor assim. Ele morreu do jeito que viveu: deixando sua marca”, disse, em relato emocionado ao Correio Popular (18/03/1997). “Penso que ele não suportaria essa loucura do mundo de hoje. O trem o poupou disso”.

Do lixo ao luxo. Imaculado e profano. Visceral e monótono. Assim foi o homem e seu cinema.



FILMOGRAFIA

1961 - Vigor (curta)
1961 - Coisa-peixe
(curta)
1965 - Manjar dos deuses (curta)
1967 - Este lado para cima (curta)
1970 - Talco nos olhos (curta)
1970 - Anacoluto (curta)
1971 - Gônadas
1973 - Meu primeiro longa vai ser um sucesso
1974 - Palimpsestos em chamas
1975 - O rébus da bigorna
1976 - Blen Mu Dlin (Água-rás)
1977 - Engenhoca e sovaca
(curta)
1977 - Circulação do sangue na cauda do girino (curta)
1980 - A gênese do toucinho (curta)
1982 - A gênese do painço (curta)
1984 - Banho-Maria
1984 - Caniço e carniça
1985 - Pequerrucha Pelourinho
1986 - Bife à cavalo
1990 - Mastro em riste

2 comentários:

Daniel Serrano disse...

Beleza de texto. Só me resta perguntar onde conseguiste acesso à obra do cineasta? Ele me cutucou a curiosidade...

marina aranha disse...

ai, tentei antes, mas errei no português. aí fica chato, por isso estou a tentar de novo! haha
aconselho muito MESMO 'saneamento básico'. e não tiro seu direito, claro, de querer 'cão sem dono'. mas vale muito a pena dar umas risadones com a fernanda torres, vai! vou obrigar se vc não for por bem, ENTENDEU? haha
belo texto em sua volta!
beijo, 'co-laborador'!
(essa é ótima, vai! haha)