segunda-feira, 2 de julho de 2007

Doença da meia-noite

Vai ser um inferno quando eu terminar Garotos incríveis, do Michael Chabon. É um daqueles livros seminais, pedra fundamental de certa fase da sua vida que vai acabar abruptamente quando você virar a página 331. Escrito há 12 anos atrás, virou até filme com Michael Douglas, dirigido pelo Curtis Hanson e ganhou Oscar de melhor música – Bob Dylan, em pessoa. Mas só isso não me satisfaz. Não vi nem quero vê-lo tão cedo assim. Nesse caso específico, a “imortalidade” da história transcrita em película não me dá tantos sinais de que os bons tempos voltaram e vou gozar novamente.



abram-se enormes parênteses: (foi exatamente assim (mas em outros termos) quando terminei Crime e castigo, depois de alguns bons meses, depois de alguns bons anos decifrando cada parágrafo monstruoso e cada sentença milimetricamente construída com uma pinça pelas mãos de Dostoievski. E foi assim quando vi Laranja Mecânica pela primeira vez, estuprado visualmente (Freud explica) e agarrado pelo estômago pra dentro da tela. E foi assim com A insustentável leveza do ser, e com “Black Napkins” do Frank Zappa, e com Crimes e pecados do Woody Allen, e com...)

Em Garotos incríveis, um escritor de meia-idade, maconheiro e irresponsável – e com um tremendo senso de humor – não consegue terminar um livro extenso que começou a escrever há mais de 7 anos. 2600 páginas depois, com a companhia de um bizarro e talentoso aluno da universidade (obcecado com os suicidas de Hollywood), uma aluna apaixonada por ele e seu editor tarado, desenrolam-se as desventuras de um homem comum, errante, desvirtuado, cujas perspectivas de vida não vão além do desejo de fumar um grande e gordo baseado no banco traseiro de seu carro. Grady Tripp sente um desprezo pela própria pessoa. Destruiu a vida de muitas pessoas, e sua consciência agora pesa tanto quanto seu manuscrito de “Wonder Boys”, calhamaço inacabado de personagens que vagam perdidas no tempo e no espaço.

Desrespeitando todas as leis de direitos autorais, saco a arma da reprodução desenfreada e atiro aqui, na cara do leitor, um de meus trechos preferidos, que acredito que definem o livro de Michael Chabon – e muito pretensamente, minha identificação pessoal com a obra.

Como Albert Vetch, ele parecia simultaneamente assombrado e desatento, o tipo de pessoa que num momento podia adivinhar, com frieza de tirar o fôlego, a tristeza mais profunda no coração dos outros, e no momento seguinte virar-se e, com um aceno de despedida alegre, marchar impassível através de uma porta de vidro, precisando de vinte e dois pontos na bochecha.
Foi na aula desse sujeito que me perguntei pela primeira vez se as pessoas que escreviam ficção não sofriam de algum tipo de desordem – sobre a qual comecei a pensar, lembrando do louco balanço noturno de Albert Vetch, como a doença da meia-noite. A doença da meia-noite é uma espécie de insônia emocional – a cada momento consciente a vítima - mesmo se escreve de manhã cedo ou no meio da tarde – sente-se uma pessoa deitada num quarto sufocante, com a janela aberta, olhando para um céu cheio de estrelas e aviões, ouvindo a narrativa de uma persiana barulhenta, uma ambulância, uma mosca presa numa garrafa de Coca, enquanto ao redor os vizinhos dormem a sono solto. Na minha opinião é por isso que os escritores – como os insones – são tão propensos a acidentes, tão obcecados com o cálculo do azar e das oportunidades perdidas, tão dados à ruminação e à incapacidade de abandor um assunto, mesmo quando lhe pedem repetidamente para fazê-lo.

Como Tripp adia o fim indefinido de seu Ulisses particular, adiarei o término dessa leitura, uma das mais prazerosas que já tive.

Mas não aguentarei 7 anos, nem fodendo.


* Fábio Bonillo está lendo Os subterrâneos, de Jack Kerouac, O amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence, Introdução a análise do discurso, de Helena Brandão, Modern News Reporting, de Carl Warren, e Revista Mad #130 ao mesmo tempo.

2 comentários:

Anônimo disse...

amigo.
me empresta o livro, pq o filme eu já vi e é exelente.

bjosmeliga

Levy disse...

Nada como ler dezenas de livros simultaneamente.... ainda quero ler este...